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15 de junho de 2016

Carma

Vive. Como se viver fosse só acordar e dar passos retos rumo às ordens, às ruas, aos pratos de comida. E vivo permanece durante os dias mais quentes, suando no suor dos outros que esbarram, ouvindo o som que toca aleatoriamente, deixando na frente das portas entreabertas das moças atrasadas bilhetes cretinos que não dizem nem se vai nem se volta.

 Na pressa de viver mais em menos tempo, tropeçou nas falhas da incerteza e caiu na besteira de querer amar. Amando é estranho, não sabe amar direito. Olha pra toda a gente que está ali parada, sedenta, excitada, humilhada e não sabe escolher. Oferece alguns sorrisos tímidos, dá piscadelas inadequadas, anda de mãos dadas sem fazer promessas, deixa grudado na gente o cheiro da eterna inverdade.

 Disse a si mesmo num raro momento de espontaneidade que precisa ter critérios perfeitamente calculados. A partir de hoje não gosta de mulheres vazias, está cansado de pessoas vazias, mesmo sem nunca, nunca ter quisto encher o próprio peito com nada além do ego, do amor próprio exacerbado, da mania de autossuficiência. Porque os outros seres, ali parados a esperar qualquer sinal, ou são incríveis e pouco belos ou belos e vazios.

Importa que sejam belos, belíssimos, que se destaquem no meio daqueles que mendigam do seu desesperado afeto. Antes possuir um corpo belo e vazio a conviver com o conteúdo dos corpos maltratados. Por que caiu na besteira de pretender amar se sabe que só existe pra cumprir o ritual da santa mediocridade? Mas caiu. E na tentativa de amar como amam as crianças, os jovens e as mulheres que se pintam das mais perturbadoras provocações, fez chorar a alma da gente.

- Não sabe que ama mal, criatura? Não sabe que anda desgraçando as já difíceis existências (ou insistências) que toca? Quando deixa insaciável sede de cantarolar as canções de amor, é a marcha fúnebre que estreia a lenta morte da gente.


Ainda vive. Como se viver fosse o remédio contínuo contra a loucura que é existir. Vive nas classes, nos computadores, nos ensaios. Mas inventou de querer mais do que podia. Inventou de querer amar alguém além de si, inventou de sentir o que não lhe caberia nem na próxima vida. E nesse infeliz tropeço fez surgir na alma da gente uma cicatriz maior que o corte.